Aqui disponibilizamos um dos textos mais celebrados da filosofia católica, e ao mesmo tempo, menos acessível ao grande público. Trecho de L'Intelligence en peril de mort, sem edição em português, até o presente momento.
CAPÍTULO I
OS
INTELECTUAIS E A UTOPIA
Toda sociedade gira em torno de um certo tipo de homem
que encarna em seus membros, com mais ou menos chances de sucesso, o que eles
consideram, conscientemente ou inconscientemente, um modelo. A Grécia tinha o Kalos-kagathos, o homem bom e belo que
busca a excelência na ordem física e moral. Roma teve seu bônus civis dicendi peritus; a Idade Média seu cavaleiro; a Espanha
seu Hidalgo; os franceses do século XVII,
l’honnête homme (o homem honesto), os
países anglo-saxões o gentleman. Essa
elite moral e socialmente dominante estava constantemente se renovando em um
campesinato de vários anos ou por meio de uma relação assídua com ele. Reunida
em duas classes que podemos chamar amplamente de nobreza e clero, ela mergulhou
suas raízes em uma vida vivida constantemente em contato com o mundo exterior,
com a natureza, com a experiência de seres e coisas acumuladas por gerações e,
confusamente, com o Princípios do Ser. Ela se esforçou, com mais ou menos
sucesso, em inúmeras tentativas, através de inúmeros fracassos, para orientar o
comportamento humano para o Verdadeiro, o Bom e o Belo.
Este tríplice fim para o qual as atividades do homem são
dirigidas não é definido e escolhido arbitrariamente. A verdadeira natureza do
homem e a própria natureza da realidade com a qual o homem se relaciona impõe
isso a todo ser-humano. Estar na verdade é conformar a própria inteligência
a uma realidade que a inteligência não construiu nem sonhou e que lhe é
imposta. Fazer o bem não é abandonar-se aos próprios instintos, aos
impulsos emocionais, à própria vontade, é ordenar e subordinar as próprias
atividades às leis prescritas pela natureza e pela Divindade que a inteligência
descobre na sua busca incansável da felicidade. Compor uma bela obra, não é
projetar qualquer ideia em qualquer material ou construir qualquer mundo que
dependa apenas do ato criativo do artista, é obedecer à lei da própria perfeição.
À obra empreendida e que se revela na própria invenção, à atividade fabril do
autor.
Em suma e sem medo de errar, podemos dizer que todas as
energias da civilização que conhecemos sob os nomes de civilização greco-latina
e cristã ou civilização tradicional, se caracterizam pela submissão da inteligência
à realidade e pela rejeição da subjetividade em todas as áreas. Exceto durante
a brecha aberta na cultura pela sofisticação, mas que uma vez foi bloqueada
pela reação vital de todo o ser humano contra a devastação que anunciava. Mão é
exagero afirmar que nenhum membro da elite da civilização tradicional não teve
a audácia de proclamar que o homem é a medida de todas as coisas, seja por sua
razão pessoal, seja por uma razão impessoal, comum a todos os homens. Pelo
contrário, o homem sabe, desde o seu nascimento e através dele, que está
inserido num universo físico e metafísico que não fez, numa ordem que não está à
sua mercê, numa hierarquia de seres cuja distribuição ele não pode alterar sem
se prejudicar. O que quer que faça, o homem reconhece que não pode tornar-se diferente
do que é por natureza, por vocação ou pela graça: ninguém pode escapar do seu
próprio ser. Superar-se de alguma forma, adicionar um côvado ao seu tamanho,
querer ser mais exclui o homem do universo e da ordem. A concepção cristã do
pecado como violação da lei imposta por Deus em cada uma de suas criaturas
encontra aqui a concepção grega de hybris,
de excesso, segundo a qual qualquer homem que ultrapassar seus limites é
imediatamente punido por estourar seu ser incontinente. Obedecendo à realidade
em todas as suas operações, a inteligência ensina assim o homem a tornar-se o
que é, a "tornar o homem bom" segundo a admirável fórmula de
Montaigne tirada de Aristóteles, e a se realizar. O herói, o gênio, o santo, são
aqueles que a alcançam a perfeição. Eles são a elite da elite.
Por mais numerosos que tenham sido os fracassos, falências,
quedas, pastiches, paródias e falsificações desta elite imitadora e secundária,
por mais decrépita que seja a fachada social, o facto é que nunca denunciou o
pacto que o estabeleceu. 'Une-se com os seus protótipos, com todos aqueles que,
com total realismo, longe de voltar a inteligência para si mesma para que se
maravilhe de si mesma e de suas promessas, humildemente a dirigiu para os próprios
entes e coisas do coração, utilizando-a com modéstia como receptáculo onde
acolhe o influxo do universo e seu Princípio, e regulando suas atividades, em
todos os campos em que estão envolvidos, nas injunções que emanam das
realidades assim contempladas. Não há verdade a menos que a inteligência
corresponda à realidade. Não há bom a menos que seja realmente bom. Nada é
belo senão a verdade, só a verdade é adorável. O primado do ser sobre a inteligência,
a subordinação da inteligência à realidade, sua docilidade em seguir a ordem
que irradia de tudo o que existe, é o que marca a ação do homem na civilização
tradicional quando “visa a excelência”. A inteligência obedece à sua natureza
de inteligência, que é conformar-se à realidade. Obedece à natureza do homem.
Obedece à natureza das coisas. Ela obedece a Deus, fonte de toda a natureza e
de toda a realidade. Aderência ao que é, recusa do que não é, tais são as suas
características.
Para esta elite de
outrora, nosso tempo substituiu uma nova classe dominante, sem exemplo na história.
Podemos atribuir uma data bastante precisa para essa mudança: o século
XVIII. Foi então que começou esta doença da inteligência, que Paul
Hazard chamou de "a crise da consciência ocidental". Neste
momento, a condução da vida humana é assumida por uma nova aristocracia, os
"filósofos", que nunca deixarão de renascer nas mais diversas formas:
o partido intelectual, como dizia Péguy, a intelligentsia
no sentido russo, os mandarins de
Simone de Beauvoir. Homens de letras, artistas, estudiosos, pensadores, todos
aqueles que Thibaudet reunirá em sua “República dos Professores” e que hoje
reunirá na classe de tecnocratas e especialistas em “razão prática”, política,
informação, relações sociais, economia, e mesmo religião, desde o recente Concílio,
todos, ou quase todos, trazem ao homem contemporâneo suas mensagens, mandatos,
instruções, diretrizes e instruções. Eles se consideram investidos de uma missão:
reformar costumes, mudar idéias e gostos, propor e impor uma nova concepção de
mundo, trazer à tona a alquimia da Evolução ou a magia da Revolução, um
"novo homem", uma “nova sociedade”. Do século XVIII até os dias
atuais, o regime mais geral sob o qual a humanidade viveu e ainda vive, por
assim dizer, é a ditadura da
inteligência, tal como se tornou desde então, é monopolizada por
intelectuais desenvolvidos, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Em nenhum momento da história
a humanidade reconheceu deliberadamente nos "letrados" este terrível
e exorbitante privilégio de conduzi-la a um novo paraíso terrestre, no futuro,
que cantam, um ponto Ômega, uma fraternidade planetária, um comunismo
universal, uma democracia mundial, uma fusão ecumênica de todos os teísmos, ateísmos,
monoteísmos e politeísmos, em suma, para a utopia. De um pólo ao outro da máquina
redonda, as vozes mais autorizadas, como o zurro de áliborons,[1] proclamam à vontade como o
poeta romântico:
Seu reino chegou, Puro Espírito, Rei
do mundo.
A despeito de todas as negações fulgurantes com que
lampeja a experiência de um quarto de milênio, nossa época incuravelmente retrógrada
se apega à visão do homem e do mundo própria da Enciclopédia. O jovem Clémenceau
ainda o formulava no triste alvorecer de um século promovido a duas guerras
planetárias e ao holocausto de uns trezentos ou quatrocentos milhões de seres
humanos oferecidos aos Molochs de Idéias fixas e obsessivas: “A soberania da
força bruta está desaparecendo e estamos caminhando, não sem confrontos, em
direção à soberania da inteligência”. Charles Maurras nos descreveu em L’avenir de l’intelligence a ascensão da
classe desses intelectuais, planejadores soberanos da opinião por escrito e por
palavra, e sua degradação merovíngia em benefício dos prefeitos do palácio que,
possuindo ouro e força, operam as alavancas do mundo. Pode-se dizer sem
paradoxo que Maurras encontra Marx aqui para quem o poder intelectual é apenas
o reflexo do poder material, e "a superestrutura" a projeção da
"infraestrutura", com a diferença de que é para Maurras, não de uma
lei universal governando a relação dessas duas ordens de poder, mas de inteligência
como se tornou naqueles que deveriam tê-la salvado e que a distorceram.
A era contemporânea apenas confirmou esta análise da
escravidão da inteligência a todas as forças anônimas que reinam no planeta: o
Estado sem cabeça, ou provido de uma cabeça separada de seu corpo, Finanças
igualmente estúpidas, a Igreja atormentada pelo mito do Reino de Deus na terra,
forças atrás das quais se escondem as vontades de poder dos césares visíveis e
invisíveis, medíocres ou inchados, todos embriagados de poder, tiranos
camuflados de libertadores que se submetem à humanidade atordoando-a com a
promessa de sua apoteose. A escravização extraordinária de clérigos, leigos e
eclesiásticos, à propaganda ideológica, anúncios comerciais, anúncios
barulhentos, ao que os antigos chamavam ironicamente de "o teatro do
mundo", a caça aos estudiosos em que os Estados exploradores modernos se
engajam. Do que eles chamam desdenhosamente "a substância cinzenta",
a clientela de experts, licenciados, aptidões cujas vontades de poder ousam
agora se fortalecer e que escravizam, o monopólio que mais do que nunca arrogam
em matéria intelectual e espiritual, são testemunhos bastante sinistros da
queda de Icaro. O balão da inteligência rompeu suas amarras: imagina-se
pairando como uma dinastia sobre a terra dos homens, enquanto é carregado por
ciclones e anticiclones com uma atmosfera mais forte que os gases raros e
evanescentes. “Não devemos nos esconder”, observou Maurras, “que corremos o
risco de ver a extinção do próprio homem, do político e do homem razoável, do
artista e do cantor. Estender a curva dupla romântica e revolucionária abre a
mente com ampla liberdade para morrer. Utopia é a morte do homem.
Gostaríamos, nas páginas que se seguem, de prolongar, senão
aprofundar o diagnóstico que Maurras fez sobre o futuro da inteligência e, vox clamantis no deserto, apoiando com
impaciência os risos e sorrisos dos especialistas do "assunto “. cinza” e
técnicos da caixa craniana, denunciam o perigo mortal que corre, em nossas
trevas, o espírito humano.
Por falta de uma filosofia que só se abre para ele nos
breves lampejos do poema, o diagnóstico de Maurras permanece, deve-se admitir,
bastante curto. Para explicar a causa desse reinado ostentoso e presunçoso dos
intelectuais, não basta descobrir a causa na história, observar suas devastações
e concluir: “A culpa é de Voltaire; a culpa é de Rousseau”. As razões morais,
por mais elevadas e agudas que sejam, não explicam sozinhas o rápido
desmembramento do império do Espírito. O orgulho e a vaidade, aos quais tantas
vezes somos tentados a apelar, são diademas falsos com os quais o animal razoável
se coroa para esconder a ferida que infligiu a si mesmo. Eles são os sinais
externos e brilhantes de um descarrilamento mais essencial. A verdade é que a
inteligência é em nós uma faculdade terrivelmente ambivalente e que, como a
linguagem de Esopo, que, aliás, a prolonga e acusa, é a melhor e a pior das
coisas.
A menor experiência que possamos ter disso nos mostra que
nossa inteligência pode atribuir-se, ora como objeto a presença de seres e coisas
que sua natureza apreende através da representação que temos deles e que
declaramos estar em conformidade com sua realidade, e às vezes, esta é uma
representação que moldamos como queremos e à qual forçamos a realidade a se
conformar. Ou a ideia que tenho dele conforma-se com o real, ou então o real
conforma-se com a idéia que forjo dele. Ou a ideia que tenho do homem é
adequada à sua realidade, ou forço a realidade do homem a ser moldada na ideia
que dela crio. Quantas vezes não sou tentado a substituir a realidade de Peter,
Paul ou Jacques pela representação sedutora ou repulsiva, embelezada ou feia,
mas falsa e enganosa, que dela compus?
Joubert descreveu admiravelmente essa dupla atitude de
pensamento que discrimina entre o verdadeiro espírito e o falso espírito: “Falsos
espíritos são aqueles que não têm o sentimento do verdadeiro e que têm as
definições dele; que olham em seu cérebro, em vez de olhar na frente de seus
olhos; que consultam, em suas deliberações, as idéias que têm das coisas, não
as próprias coisas.”
O teatro do mundo e a cena política estão cheios desses
fantasmas ou desses fantoches que o intelecto humano cria em série na medida em
que se perde o controle de si mesmo e quando se coloca a serviço dos instintos
e das paixões que o governam em segredo. Hoje, a empresa foi muito além do estágio
artesanal do produtor individual que molda seu ídolo ou sua cabeça de cachimbo.
Surgiram verdadeiras fábricas, providas de equipes especializadas, instruídas
em todos os mecanismos do fantoche humano, todas as fontes da subjetividade,
que produzem e lançam no mercado, de acordo com a demanda dos mestres da hora,
representações de acontecimentos, efígies de personagens, imagens de objetos,
concepções de mundo cuja função é suplantar a própria realidade e impedir o
homem de entrar em uma relação vivida com ela. Hoje existe uma Indústria da Utopia cujos produtos são
veiculados por modernos meios de comunicação, e da qual a Universidade é o
fornecedor aprovado. A ambigüidade fundamental da inteligência se deve à sua própria
estrutura. É fato que, para conhecer a realidade presente que acolhe e que a
fecunda, a inteligência produz uma "representação" do objeto de que
se serve para apreendê-la. Essa representação é chamada de conceito. Todo conhecimento é realizado por conceito. Qualquer
conceito é um meio de conhecer a realidade. Conhecer uma coisa é "ter uma
idéia" dela, uma idéia pela qual conhecemos a coisa em questão. Todo
conhecimento é efetuado pela geração, dentro do pensamento, de um sistema de
signos pelo qual a inteligência expressa para si mesma a realidade que conhece.
O conceito assim produzido é essencial para a inteligência. Sem ele, a inteligência
não pode dizer a si mesma o que é a realidade. Mas, por mais essencial que
seja, não é o que a inteligência apreende, é o que a inteligência apreende à
realidade. Quando formo uma ideia de uma coisa, não é essa ideia que contemplo,
mas a coisa por essa ideia.
Para que haja conceito, deve haver concepção. O conceito é
filho do casamento da inteligência e da realidade. Para que essa prole nasça, a
inteligência deve ter relações com a realidade. É óbvio que a força do filho
dependerá da saúde do pai e da mãe e da força de sua união. É a intensidade, a
amplitude, a profundidade, a riqueza, a qualidade da relação formada pelos
elementos geradores que vão marcar o conceito com o seu selo, comunicando-lhe a
impressão da realidade.
É impossível compreender este momento misterioso em que
inteligência e realidade consomem sua união. A inteligência não pode se voltar
para si mesma no momento em que se volta para a realidade e se oferece a ela
para ser fecundada por ela. Esta primeira relação da inteligência com a
realidade é pura e simplesmente vivida. A concepção é uma experiência vital
instantânea, incluindo o resto de longos preparativos anteriores, que só podem
ser descritos em metáforas. Mas é isso que sustenta todo o edifício do
conhecimento. Os conceitos que a inteligência desenvolve valem apenas o que
vale a concepção original, um ato essencial no qual a inteligência e a
realidade se abraçam e de que são expressão ou fruto.
É aqui que o drama da
inteligência acontece. A característica de uma expressão é poder separar-se da
realidade impressa na alma e da qual é correlativa, como a característica do
fruto é poder separar-se da árvore. Qualquer expressão pode se configurar como
uma entidade independente. Qualquer conceito pode ser isolado da concepção.
Qualquer signo pode ser separado do significado. Basta que a inteligência desvie o olhar dos seres e coisas que o
conceito significa fixá-lo exclusivamente no próprio conceito, no fruto do seu
seio, isto é, em si mesmo e na sua própria subjetividade criativa. Rompe-se então a corrente de abastecimento
que vai da realidade concebida ao conceito e, ao mesmo tempo, aquela que volta
da expressão à realidade expressa. A experiência vital da realidade não
alimenta mais o conceito. O conhecimento degenera na construção de andaimes e
na arquitetura de fórmulas. Esquemas abstratos substituem a energia e o vigor
da combinação orgânica de inteligência e realidade. Em vez de surgir da
experiência de seres e coisas e constantemente reabastecê-los em uma espécie de
circuito vital, o conceito se torna um molde usinado por processos mecânicos no
laboratório do cérebro. Em vez de abraçar a realidade pela transparência, ele a
encapsula atrás de suas paredes opacas.
O homem nas garras desse
desvio se fecha em um mundo mental cuja realidade se esgota em favor de aparências
sem sangue. Para ele, a realidade se transforma em combinações de signos, símbolos,
figuras e, no limite, palavras, que substituem seres e coisas, dos quais ele
nem mesmo percebe a existência ou a natureza. A inteligência utópica, criadora
e organizadora desta rede que extrai de si e da sua subjetividade, exila na inação
a inteligência real que se conforma ao objeto. O movimento natural do
intelecto, que é para se sintonizar com a realidade, é invertido. Agora cabe à
realidade se adaptar às abstrações produzidas pela inteligência. A utopia não é
mais um jogo da mente, um entretenimento. Torna-se o objeto específico da
inteligência humana.
O primeiro resultado é que o mundo não é mais
compreendido: é tomado, fixado, encerrado em construções e em formas que o
tomam de fora, o cercam, o enquadram, impõem sua configuração, sua essência,
sobre ele, seu próprio ser. Esta mesa onde escrevo não é mais uma prancha de
madeira dura e colorida, sustentada por mais de um metro, é uma nuvem de elétrons
governada por um sistema de equações sutis. A própria inteligência gera o
objeto que ela agarra. Longe de ser medido pela realidade, ele a mede e, ao
medi-la, a cria. O mundo não é mais criação de Deus, mas do homem e de seu
conhecimento. Daqui resulta também que a realidade já não tem nada de essencial
para comunicar à inteligência o ser que ela contém, que lhe pertence por
direito próprio, independentemente da mente que a conhece, isto é, para dizer
que é estável, natureza invariável, inalterável, que o torna o que é e não
outra coisa. A realidade não é mais conhecida por ser atemporal e necessária.
Para que a mente seja capaz de marcá-lo com sua impressão e projetar nele suas
categorias pré-fabricadas, ele deve ser nada sem ser puro nada. Em outras
palavras, nunca deve ser isso ou aquilo e deve mudar constantemente. O mundo
então se liquefaz de certa forma em uma massa fluida e em constante mudança.
Para não deixar escapar perpetuamente esta matéria que flui, a inteligência
multiplica as formas e as fórmulas que a interceptam.
As estruturas mentais que ela inventa para esse fim se
sobrepõem umas às outras e se tornam cada vez mais numerosas, cada vez mais
complexas. O mundo se transforma na história do mundo, o pensamento na história
do pensamento. Em suma, nada é: tudo é vir; tudo é devir. E é a inteligência utópica,
a inteligência que dá origem às formas, aos conceitos, às ideias que só
dependem de si, que dá sentido a este devir ao capturá-lo.
Finalmente, segue-se que
a inteligência privada de seu alimento natural, reduzida a sustentar-se com
alimentos pobres, insípidos e repulsivos, seca, murcha, torna-se desvitalizada,
e então precisa do apoio da imaginação, do sentimento, da paixão, de instintos,
de todas as faculdades animais inferiores que já não controla, que até desperta
e que lhe emprestam uma realidade factícia. O pensamento abstrato, desenraizado
da experiência e desta experiência transmitida que é a tradição, se prolonga sempre
na fúria destruidora da realidade presente contra a qual se choca seu caráter
quimérico, e na miragem compensatória de um futuro fabuloso que o persuade de
sua fertilidade incomparável. Porque o mundo real inflige a ele as negações
mais contundentes sem detestá-lo, ele deve apelar para os poderes hostis de
ressentimento e ódio que o destruirão, mas porque ele não pode cumprir suas
promessas sempre contraditas pela própria força das coisas, ele deve apelar aos
poderes do apetite, luxúria, da concupiscência, para apoiar a arquitetura de
seus sonhos e projetá-los no futuro por meio da incapacidade congênita de
incorporá-los no presente. As ideologias modernas, sejam elas políticas,
sociais, econômicas, estéticas ou religiosas, são todas, indiscriminadamente,
atingidas pela esterilidade, mas são igualmente afetadas por uma gravidez
imaginária que nunca chega a termo - e com razão! -, que começa novamente a
cada falha - e por boas razões! - e que leva a humanidade numa corrida sem fôlego
onde nada mais se fixa, onde a realidade se transforma em rio, senão torrente,
onde a verdade se converte a cada momento no seu oposto, onde tudo se
relativiza, onde já não permanece nos escombros do universo que o espectro do
homem atormentado pelo delírio da revolução permanente e da evolução eterna.
Se chamarmos de idealismo um sistema de pensamento que
proclama o primado da inteligência sobre a realidade, o mundo em que estamos
hoje é um mundo idealista, construído por intelectuais com grandes reforços de
abstrações e que se sobrepõe ao mundo da experiência continuamente desafiado.
Nosso mundo do século XX é tão pouco materialista que é,
do início ao fim, para sua depravação e erotismo, uma construção da mente. O próprio
marxismo, apesar de suas pretensões e fanfarronices, não é materialista. É uma
ideia projetada na sociedade para destruí-la, reduzi-la a pó, dissolvê-la em
uma massa maleável e obediente e impor-lhe uma forma há muito amadurecida em um
espírito encerrado em si mesmo, longe da realidade. É uma mentira até nos nomes
que assume: "materialismo dialético" ou "materialismo científico".
Seu idealismo explode em seu ódio por toda a realidade divina e humana, em sua ânsia
de escravizar a natureza à sua vontade de poder, no incrível desperdício de
recursos materiais com o qual se compromete a manter sua ortodoxia ideológica
nos países onde se estabelece. O mundo em que estamos, nas chamadas democracias
livres, não é mais materialista: sofreu até as profundidades das transformações
introduzidas pela mente do homem moderno. A matéria nunca aparece em seu próprio
reino. Ela é sempre metamorfoseada ali pelo artifício humano.
“O ilustre prelado”, de
quem Maurras narra a conversa com um de seus discípulos, diz bem: - “Meu jovem,
você acredita que o materialismo é o grande erro do momento?.
Errado! É o idealismo!
- Por que?
- Ele é quem mais mente.
Estamos certos em desprezar os materialistas. Porque eles são porcos. Mas nós
os vemos como tais. Nem sempre vemos o que são idealistas sociais ou políticos:
camaradas que mostram o coração, que têm imenso, e que se dão socos fortes no
peito, que soam para dar vida ao mundo. Em chamas, para torná-lo melhor. "
Com seus sublimes ares falsos, seu farisaísmo, sua feliz
elevação do pensamento e do coração, sua tartuferia cuja profundidade é tal que
se ignora, o idealismo por que morre a inteligência moderna é sem dúvida o
maior pecado do espírito.
Sua gravidade é tanto mais prejudicial quanto contagiosa.
Não percebemos o suficiente que o idealismo - e suas consequências - podem ser
aprendidos, enquanto o realismo e sua receptividade ativa a todas as vozes da
realidade não podem ser aprendidos. O idealismo é aprendido porque é um
mecanismo de ideias feito pela mente e sempre é possível ensinar essa arte de
manufatura, uma coleção de processos e receitas. Idealismo é uma técnica que
visa aprisionar a realidade em formas pré-concebidas, e a característica de
qualquer técnica é ser comunicável. Idéias, representações, conhecimento são
facilmente transmitidos de espírito para espírito assim que sua textura e seu
plano são revelados. Mas o próprio ato de conhecer, a síntese da inteligência e
da realidade, não passa de um indivíduo a outro porque é um ato vivido: cada um
deve realizá-lo por sua conta, cada um deve experimentar pessoalmente a presença
da realidade, e seu conteúdo inteligível, todos devem projetar para si próprios.
A inteligência não pode refugiar-se no mito da Razão
Universal que sugere, provoca e entroniza a facilidade com que as ideias fluem
de uma razão para outra e que o idealismo introduziu em todas as esferas da
educação. É a convergência de atos pessoais de conhecimento e concepções
vividas para a mesma realidade conhecida que sustenta a comunicação entre os
homens. Alguns vão cada vez mais fundo do que outros, mas todos estão se
movendo na mesma direção. É a realidade que reúne a diversidade de inteligências
e não um sistema comum de conhecimento desenvolvido tecnicamente. Em outras
palavras, é a finalidade das inteligências tendentes a uma mesma realidade a
ser conhecida que é a fonte do acordo, e não a identidade dos mecanismos ou métodos
intelectuais, nem os transbordamentos do "diálogo". Todos os caminhos levam a Roma. Não
existe um caminho único, não existe pensamento ou consciência coletiva, existem
inteligências - no plural! - que conduzem, por seus próprios meios, a inteligência
mais vigorosa em direção ao objetivo comum.
Por isso - repete-se sem cansaço - não há tradição
espiritual, intelectual e moral da humanidade sem os santos, os gênios, os heróis,
sem seu exemplo, sem seu magnetismo que desperta gerações. Em geração um
impulso semelhante para o Verdadeiro, o Belo, o Bom, para a realidade de
conhecer, de fazer brilhar em uma obra, de amar. A sua inteligência obedeceu
com perfeita retidão à lei que os rege e que os obriga a submeter-se à ordem -
no duplo sentido da palavra - da realidade e do princípio da realidade. Ela
respeitou, sem jamais traí-lo, o pacto originário que a une ao universo e à sua
Causa. Ela traça então em seu rastro um longo rastro de luz que dirige os esforços
tateantes de todos aqueles que, por sua vez, em seu nível, de acordo com as
capacidades que lhes são atribuídas, obedecem à lei que ordena a inteligência
para se conformar à realidade.
Se o conhecimento resulta da fertilização da inteligência
pela realidade, é porque o próprio ser do homem, do qual a inteligência é a
marca específica, está em relação constitutiva e, por assim dizer, em conivência,
pré-requisito com o ser de toda a realidade. A inteligência nunca poderia se
abrir para a presença de seres e coisas se o ser humano que é sua sede fosse
separado da totalidade do ser. Nosso ser está fundamentalmente em relação com o
ser universal e o conhecimento é, de certa forma, apenas a descoberta dessa
relação. A inteligência pode tornar-se todas as coisas, segundo a palavra
prodigiosa de Aristóteles, porque o ser do homem, assim que surge na existência,
se articula com o ser total, incluindo o seu Princípio. Em todas as suas operações,
a inteligência atinge o ser, seu objeto adequado, pois todo o universo e sua
fonte transcendente estão co-presentes com o ser humano. É essencial para o ser
do homem, como para todos os seres, exceto o Auto-suficiente, estar com todos
os outros. A inteligência é exercida no fundo ou, mais precisamente, no eixo da
co-presença da realidade universal. Sem isso, só apreenderia o ser de fora e
nunca em si, só alcançaria a aparência ou o fenômeno e não a essência, apenas o
que aparece e não o que é.
Mas essa relação fundamental e anterior com o
conhecimento está de alguma forma selada em nós: está, mas não é conhecida pela
causa. A função capital da inteligência é revelá-la, conformar-se a ela, conhecê-la
e, assim, situar adequadamente o homem no universo. É por isso que a concepção
do cosmos ou o ato pelo qual a inteligência se submete e compreende a ordem
universal é de importância inestimável. Sem ele, a vida é "apenas uma história
contada por um idiota, cheia de barulho e fúria." Um mundo onde não reina
uma concepção de mundo adequada à sua realidade está entregue a todos os
descarrilamentos.
Esta é a nossa situação atual. Vagamos por um "mundo
estilhaçado" ou, mais exatamente, somos ejetados do mundo real, navegamos
a esmo em um mundo de aparências que está constantemente sendo feito e
desfeito, porque o homem moderno recusou o lugar que lhe é conferido por toda a
natureza e que sua inteligência não aceitava funcionar de acordo com sua própria
natureza de inteligência em vez de se submeter às coisas, ele pretendia se
submeter ao universo. O homem não é mais um ser-no-mundo, ele é um
ser-fora-do-mundo que perdeu sua substância e seu caráter animal inteligente e
que busca desesperadamente o que é, porque escolheu não mais ser um
ser-com-o-mundo e-com-seu-Principio. A consequência que segue, inevitavelmente,
é que o homem moderno é tudo o que deseja, exceto inteligente. Ele é entregue,
sem perdão, a uma inteligência formal que trabalha cada vez menos na realidade
e cada vez mais nos sinais. Sua inteligência é bizantinizada ao extremo e, para
ocultar seu desastre, esconde-se sob os pretensos imperativos de uma "razão"
ou de uma "consciência universal", ponto de encontro de todas as
subjetividades em pânico. O homem não está em lugar nenhum. Ele está na utopia.
É por isso que ele não é mais ele mesmo. Ele não é mais um homem. Ele quer ser
um "novo homem" e um "novo mundo".
E foi no século XVIII que se romperam de todo as relações
entre a inteligência e o real e entre o homem e o universo. Neste ponto todos
os historiadores estão de acordo. Mas por que se consumou nessa época a tal
ruptura? Porque se esboroa no século XVIII a concepção tradicional e realista
do mundo que, de Atenas a Roma e de Jerusalém a Roma, ainda, fora a da Europa
pensante e atuante?
A razão é simples. Uma concepção do mundo não paira
desencarnada num inacessível éter. Ela se incorpora à vida dos homens, e como é
partilhada por eles, encarna-se também nas instituições criadas pelas
comunidades humanas. Por pouco que as elites portadoras dessa concepção dela se
desapeguem, renunciem a vivê-la, substituam-na por outra menos austera, mais
brilhante e mais acariciante para seu orgulho, eis que a concepção oficial do
mundo começa a vacilar, abalada. Bastam algumas frestas nos pontos críticos
para que o edifício venha abaixo, corpo e alma. Quando o alto clero se diverte
renegando Deus e exaltando o homem nas lojas maçônicas, quando a aristocracia
faz-se discípula de retóricos e rabiscadores de papel, por talentosos que sejam,
pode-se dizer brutalmente que estamos “no fim da picada”. Pequenas causas,
grandes efeitos, diz o provérbio. Como assegura Augusto Comte, com admirável
acuidade, “nessa matéria — essa é uma regra universal — nunca há proporção
entre o efeito e a causa”. Uma mulher atravessa a vida de um chefe de empresa e
eis que uma usina periclita. O nariz de Cleópatra é eterno.
É desnecessário refazer aqui as análises de Tocqueville,
de Taine, de Augustin Cochin, e recordar a fascinação exercida pelos literatos
sobre a aristocracia e o clero do século XVIII, sua crítica da civilização
tradicional, sua deificação da razão, a vontade de destruir uma sociedade que
não lhes concedia o lugar a que se julgavam com direito; os pruridos de
igualdade, a denúncia dos privilégios e sobretudo a prodigiosa habilidade com
que esses intelectuais transformavam as próprias paixões em princípios
imutáveis de direito e resolviam todos os problemas humanos apelando para o
discurso, o escrito, a discussão, a conversação mundana, os colóquios de salão,
de capela, de clube, de cenáculo, os debates de assembléias, as palrices de
sociedade, enfim o “diálogo” universal, como hoje diríamos.
Mas essa inopinada e
espetacular ascensão dos especialistas do verbo, da pena, do manejo de idéias e
representações mentais (e das palavras que as exprimem), não passa do aspecto
sociológico de uma mudança muito mais profunda. Assistimos no século XVIII — e
a aventura não terminou ainda — a uma mutação do espírito humano.
Chegada esta mutação agora a seu apogeu, e talvez a seu termo, podemos
descrevê-la com precisão.
Com efeito, até o século
XVIII os acontecimentos com que costumamos demarcar a história humana: guerras,
invenções técnicas, descobertas geográficas, migrações, fundações de Estados,
reinos, impérios, o advento de gênios, de santos e de heróis, as transformações
sofridas pelas idéias religiosas etc., os acontecimentos que serviram para
assinalar as etapas da História, repito, afetaram sem exceção o ser humano na
sua própria vida. Nenhum deles foi originalmente um evento puramente
intelectual, nem mesmo a invenção da lógica por Aristóteles (da qual o menos
que podemos dizer é que conferiu ao espírito humano o seu definitivo estatuto),
pois a arte do raciocínio é obra menos da razão do que do próprio homem, do
homem de carne e osso que utiliza a sua razão. Conforme o dito profundo do
Estagirita, não é o pensamento que pensa, é o homem que pensa por meio do
pensamento. Nenhum desses eventos jamais afetou a inteligência em si mesma.
Sejam quais forem os efeitos e defeitos que provocaram, nunca a inteligência
deixou por causa deles de ser a faculdade que conhece o real, a ele se
conformando. Em nenhum caso foi contestada a primazia da atividade própria da
inteligência, que é contemplar a verdade. A função primordial do espírito
humano jamais deixou de ser a função de conhecer, a “theoria”. O mais elevado
tipo de vida, a vida contemplativa, de que Virgílio nos transmitiu o segredo:
Felix
qui Potuiu Rerum Cognoscere Causas
foi sempre considerada o
cume da sabedoria e da felicidade. Por mais que se diga, essa absoluta
prioridade da inteligência submetida ao seu objeto não foi contestada pelo
Cristianismo. O amor não suplantou a inteligência, pois, se Deus é Amor, foi
necessário que ele se fizesse conhecer como tal aos homens e lhes ensinasse a
Boa Nova.
Reconhecer-se dependente
em face da realidade e do seu Princípio transcendente, confessar ao mesmo
implicitamente o laço nupcial que une o ser do homem ao ser universal e à sua
Causa, eis a condição essencial imposta ao exercício da inteligência; condição
que, através dos mais diversos acontecimentos, sempre ela observou. Mas se no
seu ato primeiro, ao invés de voltar-se para a realidade extra-mental, a
inteligência se redobra sobre si mesma e ai deita um olhar noturno de
comprazimento, por outras palavras, se essa faculdade (conforme a fórmula
antiga) se recusa a ser medida pelas coisas para apresentar-se como sua medida,
então, tendo repudiado a sua função própria e rejeitado a lei dessa função, o
intelecto deixa de conhecer as coisas. Antes do século XVIII via-se o
conhecimento ligado ao poder intelectivo de comunicação, logo de consentimento,
de aceitação e de docilidade para com o universo e sua Causa. Depois do século
XVIII, o pacto original foi rompido: a inteligência assume o papel de uma
soberana que governa, rege, domina e tiraniza a realidade. Do alto de sua
transcendência, projeta leis exclusivas sobre o mundo, ordena-o de conformidade
com os seus imperativos. A razão considera-se a força criadora que se
desenvolve e progride na humanidade, que se desdobra através de todo o universo
a fim de dar realidade a esse universo e de converter a humanidade numa
“verdadeira” humanidade. A inteligência não mais recebe do real a sua lei, mas
impõe suas normas à realidade.
Os filósofos do século
XVIII perceberam a reviravolta, (de que tinham, aliás, a iniciativa) na
atividade da inteligência. Confessadamente, a Enciclopédia foi criada “para
mudar a maneira comum de pensar”. Com efeito, trata-se de inverter, senão de subverter
completamente o ato do conhecimento. A inteligência deixa de ser feita para
contemplar a ordem do universo, e para compreendê-lo; deve agora constituí-lo a
partir das regras que descobriu conhecendo-se primeiramente a si mesma e que
depois impõe à realidade. Doravante compreender é dominar. Descartes formulou,
de uma vez por todas (no seu modo de ver) a nova carta da razão: o conhecimento
que a razão tem de si mesma e do seu método cognitivo torna o homem “maitre
et possesseur de la nature”.
Esse império da razão e das luzes se exerce de duas
formas igualmente autoritárias, inocentemente chamadas de análise e síntese. O
primeiro divide o real em elementos simples; a segunda o reconstrói a partir
desses mesmos elementos e segundo a própria ordem da razão. Nessas duas fases,
a razão manifesta sua onipotência por meio de sua obra de dissolução e
reconstrução realizada de acordo com os padrões que ela mesma promulgou. Agora
conhece a realidade, não porque recebeu sua marca, mas, ao contrário, porque
imprime sua marca nela. Para saber realmente é necessário, portanto, segundo o
espírito do século XVIII, refazer o objeto, produzi-lo compondo-o e, por assim
dizer, construí-lo. Então, e somente então, o conhecimento não tem mistério:
uma realidade que não pode ser recriada inteiramente pela mente permanece
obscura para a mente, enquanto um ser construído pela mente é inteiramente
transparente para ela, totalmente luminoso. O que fazemos, nós sabemos. Saber é
fazer. Qualquer atividade de conhecimento é uma atividade construtiva. A
atividade poética da mente suplanta completamente a atividade especulativa.
Hoje, ele o evacuou radicalmente.
O kantismo sistematizou essa nova atitude do pensamento
humano. Podemos reduzi-lo a três posições: a inteligência é incapaz de
apreender o inteligível, presente no sensível, e a ordem "numênica"
lhe escapa inteiramente; a função da inteligência é organizar em um todo
coerente a multiplicidade de sensações e imagens que lhe surgem e, em vez de
ser fecundada pelo mundo real, é ela que fecunda o mundo dos fenômenos e lhe dá
sentido; o homem não é mais um ser em relação fundamental com a plenitude do
ser, é uma Razão, identicamente presente em todos os seres humanos, que por si
mesma fabrica um sistema de relações cuja teia projeta na diversidade do mundo
sensível por ela ligado.
Adriano Tilgher, historiador do trabalho na civilização
ocidental, formulou de maneira notável essa inversão da atividade intelectual
do homem moderno: “Kant foi o primeiro a conceber o conhecimento como um
dinamismo sintetizador e unificador que, do caos dos dados sensíveis, e por
meio de procedimentos fundados nas leis imutáveis do espírito, extrai o cosmos,
isto é, o mundo ordenado da natureza. O espírito aparece assim como atividade
que tira de si mesma a ordem e a harmonia. Conhecer é fazer, é produzir:
produzir unidade e harmonia. A idéia de ação produtiva fica implantada de vez
no cerne da especulação filosófica. Desde o criticismo de Kant até as formas
últimas do pragmatismo, toda a história da filosofia moderna, nas suas
correntes significativas, é a história do aprofundamento dessa concepção do
espírito como atividade sintética, como faculdade produtiva, como criação demiúrgica...
Só conhecemos de fato o objeto que produzimos. Mas que produz o homem
realmente? Certamente não produz os dados últimos das sensações; estas lhe são
impostas de fora; estão nele mas não são dele. O que lhe é facultado, graças à
sua atividade, é combinar de diversas maneiras esses dados últimos, de modo a
torná-los obedientes as suas necessidades, à sua vontade, ao seu capricho;
assim substitui pouco a pouco a natureza real, natureza-naturada, por uma
natureza de laboratório, de usina, que conhece porque a fez, que é clara a seus
olhos porque é obra sua. O problema do conhecimento recebe uma solução prática.
A técnica resolve praticamente o problema do conhecimento.”
Indubitavelmente,
estamos diante de uma real mutação da inteligência humana, e portanto, do
homem. O próprio Kant sabia-o claramente. Estava convencido de que procedera em
filosofia a uma revolução coperniciana. Em vez de gravitar em torno das coisas,
o espírito é o centro em derredor do qual as coisas gravitam, como os planetas
em volta do sol. Só restará a Marx estipular as conseqüências dessa subversão:
“A crítica da religião remove as ilusões infantis, faz que o homem se ponha a
pensar, agir, a modelar a sua realidade como um homem sóbrio chegado à
idade da Razão, e assim comece a girar em torno de si mesmo, seu verdadeiro sol.
A religião não passo do sol ilusório que se move em volta do homem, enquanto o
homem não se mover em torno de si mesmo.”
Mas antes já de Marx, Feuerbach definira essa mutação e
essa subversão da inteligência, a provocar desastres que ainda ressoam na alma
dos homens de hoje: “O objeto a que se destina essencialmente e necessariamente
o sujeito não é senão o ser próprio do sujeito”; em outras palavras, o objeto
da inteligência humana é a própria inteligência, que a si mesma se apreende no
seu élan criador, e que consigo coincide enquanto princípio de
si mesma e do mundo. A inteligência é um Narciso, não imobilizado em
autocontemplação, mas que, diante do espelho, cria-se a si mesmo, criando o
mundo, e que progride sem esmorecer para a sua própria apoteose. “O ser
absoluto, o Deus do homem, prossegue Feuerbach, é o ser próprio do homem.”
Tal é a infalível conseqüência da mutação da inteligência
acuada à deificação. Com efeito, se o espírito é uma faculdade produtora, e o
conhecimento é um trabalho de produção, conhecer será não mais (conforme o
brocardo famoso) “tornar-se o outro enquanto outro”; será agir sobre os seres e
as coisas a fim de torná-las inteligíveis, substituindo a idéia que delas temos
por outra idéia e transformando-as conforme essa nova representação. Doravante,
só conhecemos o que fazemos. O mundo só é mundo na medida em que a inteligência
do homem o constrói. Está visto, o homem não cria as próprias sensações.
Recebe-as ainda do exterior. Mas esse mundo exterior, de que parece tributário,
a falar propriamente não é conhecido, não é mais que uma espécie de matéria
plástica em que a inteligência humana imprime a sua efígie. Graças a esse
trabalho da inteligência aplicada sobre os dados sensíveis, pode o homem
transformar portanto o mundo exterior de maneira a torná-lo obediente aos seus
desejos, dócil ao que estima útil ou necessário, enfim plasmável a todas as
exigências de sua vida individual e social. O exterior não mais resiste ao
homem. Graças à fissão do átomo, seu último reduto foi forçado. O mundo é pois
transformável à vontade. Nada tem mais de misterioso e de sagrado. Caeli
et terra non enarrant gloriam Dei. O mundo torna-se o que o homem
discricionariamente determina. Reina sobre ele o homem como um deus ou um
demiurgo. E quanto mais acentua seu império sobre o mundo, tanto mais o homem
se erige em absoluto, e tanto mais se substitui ao Criador, propondo-se como um
ser que prescinde de Deus, que se basta a si mesmo e que por si só se constrói
com total independência e liberdade.
Essa imensa aspiração para a asseidade e a divindade,
essa prodigiosa auto-suficiência e idolatria de si mesmo inaugurada pelo Cogito
cartesiano, entronizada pela Razão Kantiana, levada ao apogeu pelo Espírito hegeliano,
magnificada no homem por Feuerbach e encarnada por Marx no comunismo (em que o
homem faz uma volta completa sobre si mesmo e se reconhece “como a mais alta
divindade”, que “não tolera rivais”) não é apenas apanágio dos filósofos. Essa
aspiração propagou-se na humanidade inteira, com fulminante rapidez, graças à
difusão das “Luzes”, isto é, a expansão universal da instrução pública e a
proliferação da classe dos intelectuais. E isto é bem compreensível.
Nada é mais difícil do que penetrar na realidade dos
seres e das coisas em toda a sua profundidade. Diante do menor grão de areia, a
inteligência se remete à totalidade do universo e a Deus. O real resiste à
mente e apreender sua natureza íntima é um trabalho de tirar o folego, no qual,
a experiência tem um papel imenso que deve ser constantemente revivido. Não acontece
o mesmo com idéias e representações mentais; filhas do pensamento, são suas dóceis
servas, que, sem rebeldia, submetem-se aos seus desígnios, aos seus desejos,
aos seus projetos. O intelectual reina soberano sobre seu mundo interior. Nada é
mais estimulante do que este jogo de ideias em que o jogador triunfa
inevitavelmente, desde que a ideia enfraqueça ou rompa a sua relação com a
realidade e que a dura lei do confronto seja abolida no cérebro ou na
linguagem. Com a experiência que sujeita as nossas representações a controle
implacável! Essa trapaça é incrivelmente frequente no intelectual.
Para ele, quase sempre, os conceitos e as
palavras, sinais que deviam traduzir o real, substituem-no, fazem as vezes do
mundo tal como ele se revela à observação e à inteligência objetiva. O hábito
que há tanto tempo adquiriu de manipular com a maior facilidade esses signos
ideais ou verbais comunica ao intelectual a impressão e logo a convicção de que
ao manejar fórmulas, agarra a própria realidade
O contato severo e áspero
com seres e coisas que a verdade do significado requer, a relação vivida com a
realidade total e com seu Princípio que o exercício da mente pressupõe, quase
sempre se enfraquece nele a ponto de, preso em seu "pensar", ele se
dedica a refinar suas idéias e sua expressão. Quase sempre, esses signos de
realidade que são os conceitos e as palavras que os traduzem tomam o lugar da
realidade e substituem para ele o mundo que se revela à observação e à inteligência
objetiva. O longo hábito que ele tem de lidar com a maior facilidade esses
signos ideais ou verbais comunicam-lhe a impressão e logo a convicção de que,
tomando fórmulas, ele possui a própria realidade. Além do mais, ele está
convencido de que a solução dos problemas que ele consegue colocando entre as
idéias é aquela que a realidade exige, mas da qual algum gênio do mal, difusor
de aberrações seculares, abafa a voz. Saliva e tinta removeram rapidamente os
obstáculos. Como, então, podemos nos surpreender que a nova concepção do homem
e do mundo que chamamos de idealismo tenha alcançado um sucesso tão vil, tão rápido,
particularmente na profissão docente onde ele mantém, sob vários nomes, que vão
do existencialismo ao marxismo e o estruturalismo, posições sólidas e, dadas as
condições de recrutamento do corpo docente, inexpugnáveis. O idealismo atrai
todas as mentes que relutam em fazer um esforço para abraçar a realidade e que
pretendem, apesar de sua resignação ou por causa de sua própria resignação,
oferecer uma solução para todos os problemas humanos, mesmo ao custo da remoção
de todos os problemas e de seu caráter humano. Ele se encaixa como uma luva
para qualquer um que sacrifica as lições da experiência e da tradição às suas
próprias lições. Segue a vertente do fácil: organizar o pó das sensações e a
multidão de imagens que nos assaltam, segundo esquemas superficiais que a sua
aparência sugere e que a inteligência se desenvolve em si em virtude de uma
pretensa potência criadora ou dita direita de conquista, ou vivenciar a presença
das realidades mais humildes do cotidiano em uma experiência profunda em que a
sensibilidade, a imaginação, o espírito colaboram e o elevam ao nível do
pensamento de quem o projeta? Onde se encontra a verdadeira criatividade: nos
artifícios da palavra e da escrita ou no laborioso ato de inteligência onde o
germe inteligível contido no sensível dá sua flor e seu fruto? O que é mais difícil:
descobrir a ordem natural do universo ou encerrar seres e coisas no quadro de fórmulas,
sejam elas matemáticas?
O idealismo favorece, com
toda a sua impotência, a substituição da inteligência utópica pela inteligência
real. Uma concepção do mundo e do homem que dá as costas às severas exigências
de humildade impostas à inteligência em matéria de verdade e que não reconhece
que o espírito humano está situado em um nível inferior na hierarquia dos espíritos,
ao mesmo tempo que permite quem o professa, para mostrar seu virtuosismo, tem
todas as chances de obter o público e os favores do público. Quando pensamos
nas gerações que se formaram - ou se deformaram - por quase dois séculos, em
todos os níveis de ensino, em uma atmosfera supersaturada de nuvens e fumos
idealistas, nos maravilhamos com a existência de algumas reservas de bom senso
na humanidade.